header photo

18 de nov. de 2008

STJ traça paralelo entre códigos no tema da responsabilidade civil em face de ato praticado em estado de necessidade

É impossível afastar a responsabilidade de um motorista de ônibus que, ao avistar um caminhão na contramão, invadiu o acostamento e atropelou uma jovem que estava na beira da rodovia. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não atendeu ao recurso da empresa de ônibus e manteve a decisão de segunda instância que entendeu existir responsabilidade civil mesmo quando o ato foi praticado em comprovado estado de necessidade.
A jovem foi atropelada a acabou morrendo em um acidente de trânsito que envolveu um ônibus e um caminhão em 1990. Ela estava parada à beira da estrada quando o motorista do caminhão que deu origem ao acidente tentou fazer uma ultrapassagem. A manobra não deu certo e o caminhão atingiu a lateral do ônibus que vinha no sentido contrário. A colisão fez o motorista do ônibus perder o controle do coletivo e atingir a jovem no acostamento, antes de conseguir parar.
A mãe da vítima ajuizou ação de indenização por danos materiais e compensação por danos morais contra a empresa. Esta se defendeu alegando que o ônibus teria sido um mero objeto involuntário no desdobramento causal, já que este foi arremessado pelo impacto sobre o corpo da vítima.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) salientou, ao julgar parcialmente procedente o pedido apenas no tocante aos danos morais, que mesmo o eventual estado de necessidade (quando o autor pratica conduta para salvar, de perigo atual, direito próprio ou alheio) não isentaria a empresa do dever de indenizar a família.
Inconformada, a empresa de ônibus recorreu ao STJ argumentando que o TJRS afrontou o princípio da irretroatividade das leis, uma vez que a decisão está inteiramente baseada em dispositivos contidos no atual Código Civil (CC/02), existindo relevante diferença de alcance entre as redações destes e dos dispositivos correlatos no antigo Código Civil (CC/16), que era a lei vigente à época do fato (1990). Isso porque o CC/16 previa apenas a responsabilidade civil por danos às coisas, e não às coisas e às pessoas, como faz o CC/02. Assim, no CC/16 não havia referência à obrigação de indenizar pelos danos causados diretamente à pessoa que sofria a lesão nos casos de estado de necessidade.
Ao analisar o processo, a relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que, em termos literais, é verídica a afirmação de que o artigo 1.519 do CC/16 conferia direito à indenização apenas pela destruição de coisa, se o dono desta não fora culpado do perigo, em face daquele que agiu em estado de necessidade, enquanto o dispositivo correspondente do CC/02 assegura o mesmo direito tanto se o prejuízo for material quanto pessoal.
Porém, tal constatação não é suficiente para esgotar a matéria, ao contrário do que entende a recorrente, pois, na hipótese, houve o evento morte e a ação foi proposta pela mãe da vítima – de forma que o direito pessoal pleiteado é de terceiro que é estranho à configuração fática da situação de estado de necessidade. Passa a ser necessária, assim, a intermediação de outras regras de responsabilidade civil, notadamente o artigo 1.526 do CC/16 (atual artigo 943), segundo o qual “o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, exceto nos casos que este Código excluir” (ressalva que não consta no CC/02) e o art. 1.540, segundo o qual “as disposições precedentes [relativas à liquidação da indenização por homicídio ou lesão corporal] aplicam-se ainda ao caso em que a morte, ou lesão resulte de ato considerado crime justificável, se não foi perpetrado pelo ofensor em repulsa de agressão do ofendido”.
Nesses termos, não ocorreu retroação de disciplina jurídica nova a fatos passados, pois o CC/16 já disciplinava, expressamente, a reparação do dano causado por morte em circunstância de estado de necessidade, muito embora a sistematização da matéria fosse diferente. Assim, entre o Código de 1916 e o atual, a diferença é de ordenação dos dispositivos, não de conteúdo propriamente dito.
Em face dessa conclusão, a ministra salientou que o TJRS, ao fazer referência aos dispositivos do novo Código Civil, não os usou como fundamento da decisão, mas apenas como reforço de argumentação, na medida em que a mesma solução jurídica era imperativa no contexto dos dois Códigos, sendo de se ressaltar, ainda, que, durante a vigência do CC/16, a interpretação puramente literal dos artigos 160, II, e 1.519 vinha sendo desafiada por uma construção jurídica que informava tais regras a partir de uma hierarquia de valores presentes no ordenamento jurídico como um todo, pois evidentemente não poderia deixar de chamar a atenção o fato de que o CC/16, em análise literal, dava mais relevância ao patrimônio do que à vida.
Fonte: STJ Resp 1030565